Passar mais de dois meses trancada dentro de casa não é nada fácil. Em alguns lugares o isolamento começou há meses, em outros a experiência é mais recente. As restrições são mais ou menos severas, seguindo a confusa cabeça dos governantes e cientistas neste momento, mas a sensação de confinamento é universal.
Em alguns lugares, como no Reino Unido, o isolamento começa a ser liberado aos poucos. Esta abertura gera um certo alívio, afinal está todo mundo de saco cheio, mas há também a preocupação de as coisas possam piorar. Na prática é tudo muito estranho, e ninguém entende nada. Nevermind. O trânsito tem aumentado. No final de semana há mais gente nas ruas e nos parques. Se faz sol há pequenos aglomerados de famílias fazendo piquenique. Se antes fuzilavam você com os olhos a 1.99 metros de distância, agora muitos não dão a mínima para os corpos que passam correndo ou pedalando.
Vejo que os bancos de parques não estão mais selados. No entanto há placas indicando que os banco não foram desinfetados, mas você pode sentar-se ali, e compartilhá-lo apenas com membros da sua família. Realmente estamos avançando com segurança, que bom. Já abriram os clubes de tênis e golfe, para alívio da nação. Dois esportes para os quais não tenho o menor talento.
Ainda há muito a liberar e não se pode ter expectativas. Viva um dia de cada vez, como no AA. Aliás a possibilidade de sentar-se num pub para um drink continua bem remota. Programar uma pequena viagem e hospedar-se num hotelzinho pior ainda. Talvez em julho.
Creio que somos bombardeados com noticias de Covid-19 na mídia, ou com uma atividade frenética online de lives e programações e cursos de toda sorte para esquecer o que perdermos lá fora. Para esquecer o tanto que tem se perdido e não são apenas corpos, são tantas coisas, mas tantas. Só de começar a enumerá-las e de pensar em quando irei ver pessoas queridas que estão tão longe me dá um desalento profundo.
Esta semana eu aguardava um ônibus gratuito que estava muito atrasado, por conta do distanciamento social. Desisti da espera e fiz uma longa caminhada por Fulham. Eu ia chegar tarde no trabalho de qualquer jeito. Eu geralmente pedalo para o trabalho e escuto música, o que me distrai, mas ando com uma cervicalgia há dois meses, e a tensão só piora, ter que carregar mochila todo dia para me trocar. Ando carregando muitos pesos nas costas ultimamente. A metáfora é clara.
Caminhar tem outro ritmo. Caminhar pela cidade vazia, como uma estranha flâneur. Contemplar uns solitários balões de aniversário pendurados numa janela. Passar por lugares onde estive com outras pessoas, onde me diverti tanto. Pensar no imenso impacto financeiro de ver o comércio fechado, a estação de metrô desolada. Tive até nostalgia das mensagens de áudio que enviava para um amigo cearense neste trajeto, quando descia do tube. Nossas conversas matinais entre Inglaterra e Alemanha antes de enfrentar o dia, sobre temas sérios e deliciosamente banais.
Esta perda de liberdade, estas perdas todas de pequenas e grandes coisas, estão tendo um intenso impacto na saúde mental das pessoas. Reações agudas de estresse, crises de pânico, hipocondrias agudas e por aí vai. Emoções extremas que para muitos parecem ser inéditas, descontroladas. É que sufocados por outras restrições de suas vidas, e sem válvulas de escape a cabeça sofre. E o corpo é que paga, como diz uma música de António Variações. Há para muitos a condição de ser estrangeiro, o medo de adoecer em outra língua, de morrer em outro país. De repente me vi sendo procurada por brasileiros para consultas online. Ser escutado e cuidado na língua maternal é um conforto. Eles têm toda a minha empatia neste momento.
E por falar em conforto, este também é um momento excelente para sair das zonas de conforto. Uma boa estratégia para não adoecer. Nossa tolerância nunca esteve tão baixa. Os infernos pessoais foram destrancados dos seus sótãos neste confinamento. Não há rotas de fuga, a não ser o escapismo do álcool e substâncias ilícitas (para uns poucos) talvez, que é simplesmente temporário. O momento é brutal. A trilha sonora urbana é a sirene da ambulância nos lembrando o tempo todo sobre o que está acontecendo lá fora.
Fico pensando em como lidar com isto. Uns dias atrás vi algo curioso. Uma matéria antiga sobre aulas de ioga em catsuitsde látex em Berlim. Acho que cairia muito bem agora. Para lidar com estas restrições precisamos ser flexíveis, saber-se mover com ginga, e dar uns pulos de mulher gato se for preciso. Empregos insatisfatórios, relacionamentos ruins, gente oportunista, desrespeito, desprazer de qualquer natureza são muito difíceis de aguentar agora. Restrição me faz pensar também em Saturno, o senhor do tempo. Reduz tudo ao essencial.
Eu nunca fui uma pessoa muito doméstica, e sempre me desloquei muito. Meus pais separaram cedo, cresci entre duas casas. Sinto falta da minha vida social e ando cansada do trabalho, das adaptações do trabalho. Cozinhar de vez em quando é um prazer, mas tenho dificuldade com a rotina, com as rotinas à minha volta. Apelo para a criatividade, das receitas exóticas às raves online de peruca, mas cansei. Ando numa fase marcial, meio raivosa.
Sonhei que morava numa casa de janelas trancadas com um escritório e um auditório. A casa era ampla, mas não tinha área externa. É hora de me virar dentro dessa casa interior. De escutar um som pesado, um techno from hell, virar ninja numa roupa de borracha e golpear contra estas restrições interiores. Quem sabe eu tenha algo para aprender com esse tal de Saturno. Ou será com Marte.
Virna Teixeira
(Foto: Betsy Johnson, self-portrait para Office Magazine NYC