Retratar a realidade
Resolvi fazer uma pausa do blog enquanto reajustava minha volta ao trabalho. Estava cansada de noticias, da troca de artigos e novas experiências no manejo ao coronavirus entre colegas médicos, de webinars e coisas do gênero, que sem duvida são necessários neste momento. Todos querem tornar-se especialistas em Covid-19, armar-se contra a pandemia. Mas este excesso de informação científica, tanto para profissionais de saúde quanto para o publico geral também é prejudicial e pode causar muita ansiedade. Eu me pergunto se não é uma tentativa obsessiva de controlar o que persiste, neste momento, incontrolável. Para alguns torna-se um ritual de TOC, simbolizado pela lavagem excessiva das mãos.
Leio num e-mail do NHS ‘o que temos neste momento para combater o coronavirus é oxigênio’. Concordo. Outro dia encontrei no Instagram uma foto de uma drag queen com um catsuit futurista azul celeste apertando um spray em direção ao céu numa paisagem bucólica. Miss Oxygen. Ela me fez rir. Sim, precisamos arejar nossas mentes. A camada de ozônio está felizmente aumentando. Que sirva de exemplo.
Eu trabalho com saúde mental, e também preciso cuidar da minha. Sou humana e saí de uma saison en corona enfer muito recentemente. Tive sintomas que me assustaram, isolada dentro de um quarto por dias, e cheguei a ligar para uma ambulância. Tive que lidar com outros casos de Covid-19 na família, e dar algum tipo de suporte médico também (sou apenas uma médica). Perdi meu sogro bruscamente para este vírus maldito. Ele era uma pessoa feliz, saudável, fazia muito por sua comunidade e era um marido, pai e avô dedicado. Há pouco mais de um mês pedimos o mesmo prato num restaurante, quando as primeiras mortes eram anunciadas na mídia. Ele fez um comentário irônico, com o seu senso de humor peculiar. Fazia shows de mágica para as crianças. Agora esse disappearing act! Hei de reencontrá-lo um dia escondido dentro do Musée de la Magie em Paris com algum truque novo. Coisas que rumino enquanto pedalo para o hospital.
No trabalho anunciaram que teremos que usar uniformes. Camisa polo e calças compridas. As cores serão variadas segundo a função. Para os médicos escolheram a cor preta. Uma espécie de mortalha oficializada, só pode. Como se já não fosse estranhíssimo interagir de máscara com os pacientes numa enfermaria psiquiátrica. Adoro afirmar a individualidade nas minhas roupas. Planejo usar meus turbantes e meus grandes colares e brincos de acrílico com cores bem vivas. Eu não vou aceitar passivamente essa escuridão desumanizante, eu vou me rebelar de alguma forma.
Ontem vi um programa novo excelente no Channel 4 sobre como os artistas estão lidando com o isolamento, com o artista inglês Grayson Perry, que é também o crossdresser mais famoso da Grã-Betanha. Ele não estava vestido como seu alter ego Claire. Estava lá como Grayson apenas, com roupas de drab sujas de tinta, e durante o programa desenhou sua mulher, e depois pintou o desenho numa prato de cerâmica. Disse que se sentiu vulnerável e fora da sua zona de conforto ao fazer aquele portrait em público. O programa teve a participação de artistas diversos do país, todos mostrando portraits de quarentena. Grayson Perry dizia como estamos todos feridos, de alguma forma, e precisamos retratar este momento.
A arte é uma garantia de sanidade, como disse Louise Bourgeois, e permite alguma forma de mágica. Nesse momento me sinto vulnerável para escrever um poema, talvez por usar uma outra técnica para escrever poesia, emocionalmente mais laboriosa, mas me alivia retratar minha realidade com as palavras. Há muitas mortes e perdas por aí. Precisamos mais que nunca de um pouco de imaginação e reinvenção para resistir, não podemos deixar que esse vírus nos destrua, que danifique a nossa saúde mental.
Ainda sobre os retratos. Eu estava há pouco admirando no computador um portrait recente de um artista do norte da Inglaterra no site da Saatchi Gallery. A tela mostra em primeiro plano uma menina séria e andrógina, de cabelos escuros e curtos, e um misterioso cobertor colorido ao fundo (seria um objeto transicional deixado para trás?) Eu gosto da expressão desta menina, da força do seu olhar. Das discretas pinceladas de dourado no céu, de pequenas áreas luminosas no seu rosto. Uma espécie de jovem anima alquimíca, desafiando enigmaticamente esta crise. Senti uma espécie de alento esta manhã.
Virna Teixeira